Já repeti o antigo encantamento,
E a grande Deusa aos olhos se negou.
Já repeti, nas pausas do amplo vento,
As orações cuja alma é um ser fecundo.
Nada me o abismo deu ou o céu mostrou.
Só o vento volta onde estou toda e só,
E tudo dorme no confuso mundo.

"Outrora meu condão fadava, as sarças
E a minha evocação do solo erguia
Presenças concentradas das que esparsas
Dormem nas formas naturais das coisas.
Outrora a minha voz acontecia.
Fadas e elfos, se eu chamasse, via.
E as folhas da floresta eram lustrosas.

"Minha varinha, com que da vontade
Falava às existências essenciais,
Já não conhece a minha realidade.
Já, se o círculo traço, não há nada.
Murmura o vento alheio extintos ais,
E ao luar que sobe além dos matagais
Não sou mais do que os bosques ou a estrada.

"Já me falece o dom com que me amavam.
Já me não torno a forma e o fim da vida
A quantos que, buscando-os, me buscavam.
Já, praia, o mar dos braços não me inunda.
Nem já me vejo ao sol saudado ergUida,
Ou, em êxtase mágico perdida,
Ao luar, à boca da caverna funda.

"Já as sacras potências infernais,
Que, dormentes sem deuses nem destino,
À substância das coisas são iguais,
Não ouvem minha voz ou os nomes seus.
A música partiu-se do meu hino.
Já meu furor astral não é divino
Nem meu corpo pensado é já um deus.

"E as longínquas deidades do atro poço,
Que tantas vezes, pálida, evoquei
Com a raiva de amar em alvoroço,
lnevocadas hoje ante mim estão.
Como, sem que as amasse, eu as chamei,
Agora, que não amo, as tenho, e sei
Que meu vendido ser consumirão.

"Tu, porém, Sol, cujo ouro me foi presa,
Tu, Lua, cuja prata converti,
Se já não podeis dar-me essa beleza
Que tantas vezes tive por querer,
Ao menos meu ser findo dividi
Meu ser essencial se perca em si,
Só meu corpo sem mim fique alma e ser!

"Converta-me a minha última magia
Numa estátua de mim em corpo vivo!
Morra quem sou, mas quem me fiz e havia,
Anônima presença que se beija,
Carne do meu abstrato amor cativo,
Seja a morte de mim em que revivo;
E tal qual fui, não sendo nada, eu seja!

Autor: Fernando Pessoa

Já repeti o antigo encantamento,<br />E a grande Deusa aos olhos se negou. <br />Já repeti, nas pausas do amplo vento, <br />As orações cuja alma é um ser fecundo. <br />Nada me o abismo deu ou o céu mostrou. <br />Só o vento volta onde estou toda e só, <br />E tudo dorme no confuso mundo.<br /><br />"Outrora meu condão fadava, as sarças <br />E a minha evocação do solo erguia <br />Presenças concentradas das que esparsas <br />Dormem nas formas naturais das coisas. <br />Outrora a minha voz acontecia.<br />Fadas e elfos, se eu chamasse, via.<br />E as folhas da floresta eram lustrosas.<br /><br />"Minha varinha, com que da vontade<br />Falava às existências essenciais,<br />Já não conhece a minha realidade.<br />Já, se o círculo traço, não há nada. <br />Murmura o vento alheio extintos ais,<br />E ao luar que sobe além dos matagais<br />Não sou mais do que os bosques ou a estrada.<br /><br />"Já me falece o dom com que me amavam.<br />Já me não torno a forma e o fim da vida<br />A quantos que, buscando-os, me buscavam.<br />Já, praia, o mar dos braços não me inunda.<br />Nem já me vejo ao sol saudado ergUida,<br />Ou, em êxtase mágico perdida, <br />Ao luar, à boca da caverna funda.<br /><br />"Já as sacras potências infernais,<br />Que, dormentes sem deuses nem destino,<br />À substância das coisas são iguais,<br />Não ouvem minha voz ou os nomes seus. <br />A música partiu-se do meu hino.<br />Já meu furor astral não é divino<br />Nem meu corpo pensado é já um deus.<br /><br />"E as longínquas deidades do atro poço, <br />Que tantas vezes, pálida, evoquei<br />Com a raiva de amar em alvoroço, <br />lnevocadas hoje ante mim estão.<br />Como, sem que as amasse, eu as chamei, <br />Agora, que não amo, as tenho, e sei<br />Que meu vendido ser consumirão.<br /><br />"Tu, porém, Sol, cujo ouro me foi presa, <br />Tu, Lua, cuja prata converti,<br />Se já não podeis dar-me essa beleza<br />Que tantas vezes tive por querer,<br />Ao menos meu ser findo dividi <br />Meu ser essencial se perca em si,<br />Só meu corpo sem mim fique alma e ser!<br /><br />"Converta-me a minha última magia<br />Numa estátua de mim em corpo vivo! <br />Morra quem sou, mas quem me fiz e havia, <br />Anônima presença que se beija,<br />Carne do meu abstrato amor cativo,<br />Seja a morte de mim em que revivo;<br />E tal qual fui, não sendo nada, eu seja! - Fernando Pessoa




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