A mulher, em paz com Deus e com o mundo, dormia tranquilamente. Apontou o despertador para as sete e meia. Enquanto se descalçava, deu-se conta de que tinha as meias empastadas de sangue. Lá fora, uma algazarra de gatos.
João Ricardo PedroSó se a separássemos do resto do corpo, o que não era boa ideia. Por isso, o que o ponteiro vermelho indicava não era o peso da mão, mas a força que ela estava a fazer.
João Ricardo PedroQuem terá sido o granda maricas que inventou os sapatos? E depois de inventar os sapatos, depois de os fazer e de os calçar, onde é que ele passou a ir que não ia dantes? Que mundo de oportunidades é que se lhe abriu? Nenhum. Zero. Um gajo percebe que se tenham inventado barcos, muito bem. Carros, sim, senhor. Aviões, fantástico. Agora, sapatos? Os pés é que passaram a perder capacidades. E o cabrão do maricas ganhou um negócio, claro está.
João Ricardo PedroDona Laura, ao ver a casa encher-se de bocas - e pressentido que isso de golpes de Estado era coisa para levar o seu tempo -, apressou-se, de faca e alguidar, em direcção às capoeiras, donde regressou com as duas primeiras vítimas da revolução. E ainda não tinha soado as duas da tarde quando, num exercício ostensivo de poder, como se quisesse deixar bem claro o que quer que estivesse a acontecer no País, ali em casa tudo permanecia na mesma, desligou o rádio e a televisão, abriu as portadas que davam para o jardim e anunciou que a canja estava na mesa.
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«Por mar», respondia Bocalinda, «claro que entraram por mar. O cabrão do mar que sempre foi e sempre será a nossa desgraça. Mas cabe na cabeça de alguém fazer a capital de um país junto ao mar? Vaidades».
João Ricardo PedroPerante o seu momentâneo desânimo, a mãe encheu uma panela com água e deu-lhe nove ocos. Disse: «Põe os ovos, um a um, dentro de água, com cuidado para não se partirem. Os que forem ao fundo, estão bons, os que vierem acima, estão estragados.
Duarte perguntou se não deveria ser ao contrário: os maus irem ao fundo e os bons nadarem.
A mãe riu-se: «Não, os bons vão ao fundo.»
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Acontece, muitas vezes, criarmos uma profunda empatia com uma determinada obra de arte porque, de certa forma, nos conseguimos descobrir nela, ou numa parte dela.
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