Pela noite fechada de silêncio, escrevo. É uma noite de Inverno, limpa, definitiva, uma evidência brilha na sua linearidade, no diagrama das estrelas… Olho-a, ouço-a. Todas as vozes obscuras, como bichos nocturnos, sobem ao limite do meu espanto, da minha vigília. (…)
Um homem novo recria-se-me na transparência do seu ser. Sinto-o leve e lúcido, instantâneo e incandescente, por entre cinzas que o fogo deixou. (…) o homem primordial que em mim sobe tem a face atónita de uma primeira interrogação. E não é isso uma imagem, uma figuração com que procuremos, contra um hábito endurecido, abrir os olhos a um novo modo de ver. (…) Sou eu só, diante de mim e da noite, irredutível e inútil na minha lucidez.
E no entanto, nenhuma desculpa me tranquiliza o remorso da urgência de um mundo a repovoar. É um remorso que se agrava à certeza de que os outros se reconhecem na mesma urgência e vazio. (…)
A invenção de um novo mundo não é uma invenção de ninguém. Não está na nossa mão criá-lo; está só, quando muito, ajudar no seu parto. E todavia – sabemo-lo bem – é em nós que ele se gera; mas tão longe de onde estamos, que só já quando irrevogável o sabemos. Um mundo acontece na escolha interminável de nós. Assim pois, testemunhas apenas à superfície desse acto de criação, (…), nós cumprimos sempre as ordens que ninguém deu e não as pudemos pois discutir. (…) A última justificação de todas as justificações escapa sempre ao homem e dela chega apenas até ele o seu eco pluralizado. (…)
E todo o problema do mundo de hoje está aí. Regresso a mim, ao meu corpo distinto e classificável onde todo o milagre aconteceu. E pergunto-me, suspenso, como foi possível, como é que uma breve semente abriu assim até essa Voz, até ao silêncio donde essa Voz falou. Frente ao grande sono dos homens que o esqueceram, na atenção inexorável ao sem limite de mim, a minha vigília arde como um fogo assassino. É um fogo alto e poderoso. Lume breve na minha intimidade, na brevidade de um pequeno ser, eu, anónimo e avulso, ocasional e frágil – eu. E todavia, esse lume vibra de vigor, brilha único e intenso contra o assalto da noite. Trago em mim a força monstruosa de interrogar, mais força que a força de uma pergunta. (…) o que eu trago em mim é o anúncio do fim do mundo, ou mais longe, e decerto, o da sua recriação.
A arte deve servir-se fria. Pode ter álcool por dentro. Mas tem de ser álcool que se tirou do frigorífico.
Vergílio FerreiraTag: arte
A razão e o sentimento vivem em ti em quartos separados. Mas têm decerto uma porta de comunicação. Qual deles é o primeiro a transpô-la? A razão é do género feminino e o sentimento do género macho. Qual deles para o outro lado? (Vira a página da alma e vê a resposta).
Vergílio FerreiraTag: razão sentimento
Se no universo houvesse caos e não ordem, acabarias por achar no caos uma ordem. Se o homem em vez de ser homem que é, tivesse o corpo de gorila, acabarias por achar nele o que fosse belo e feio. Deus põe mas tu dispões. O que te valeu a ti, para não apanhares uma paixão tremenda por uma sapa, foi o homem não ter nascido com o feitio do sapo.
Vergílio FerreiraUma vida só tem história do princípio para o fim se a tiver do fim para o princípio.
Vergílio FerreiraTag: vida
A arte não serve para nada. A filosofia também não. Excepto como expansão da pessoa que se é, ou seja, do homem que se é. O que se segue e importa saber é se o homem serve para alguma coisa.
Vergílio FerreiraNão penses que a sabedoria é feita do que se acumulou. Porque ela é feita apenas do que resta depois do que se deitou fora.
Vergílio FerreiraTag: sabedoria
Uma força estranha pôs-te em movimento uma certa multiplicação de células. E quando o conjunto estava organizado, nasceste. Um dia soubeste desse conjunto e reflectiste maduramente sobre ele. Já não te lembras. Mas de vez em quando voltas à tua obsessão. Maravilhas-te e interrogas-te como diante de toda a maravilha. E porque a maravilha é maior do que tu, continuas. E a única forma de não continuares, é ser essa maravilha mais pequena do que tu. E a maneira mais fácil de isso conseguires, é seres um imbecil.
Vergílio FerreiraO amor acrescenta-nos com o que amarmos. O ódio diminui-nos. Se amares o universo, serás do tamanho dele. Mas quanto mais o odiares, mais ficas apenas do teu. Por que odeias tanto? Comprar uma tabuada. E aprende a fazer contas.
Vergílio FerreiraMinha imaginação doente. Meu pensar de loucura. Entender. Porquê a obsessão de entender o que não tem entendimento possível? Porquê a obsessão de ter de haver uma resposta, apenas porque houve uma pergunta? Todo o entender é no impossível que tem o seu limite. Mas o impossível é a medida do homem e a sua vocação. Aí sou. Aí estou.
Vergílio FerreiraTag: existência
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